O DIA EM QUE FALTOU A LUZ
Andava-se à pressa naquele fim de tarde.
Como se todos estivessem a tentar agarrar alguma coisa que estivesse a fugir. Andava-se e corria-se, como se a eminência de algum acontecimento estivesse, de facto, para acontecer. Mas não. Nunca acontecia. Ou talvez acontecesse todos os dias mas ninguém reparava. Andava-se à pressa porque era assim que se andava há muito tempo. Já ninguém sabia porquê.
Ao chegarem a casa ligavam-se televisões, computadores e tablets e carregavam-se telemóveis cujas baterias morriam diariamente mais ou menos à mesma hora. Baterias de morte certa e rotineira. Era importante actualizar murais e opiniões e publicar comprovativos fotográficos do que se tinha vivido.
A trovoada, o vento e a chuva que se esperava para aquele fim de tarde veio ao mesmo tempo de directos e publicações instantâneas. As rajadas foram tais que já ninguém se lembrava do último dia em que tinha faltado a luz à séria. A televisão não liga, o computador não funciona e as baterias não se carregam.
O fim de tarde avançou, indiferente. Escondeu-se o Sol e veio a Noite. Esta particularmente escura.
Entre irritações e frustrações profundas, procuravam-se velas nos armários altos ou nos armários baixos, já que nos armários do meio estão as coisas que achamos realmente precisas, como pratos, copos e canecas.
As velas lá se encontram, geralmente guardadas entre enfeites de Natal e presépios mais ou menos completos. Dentro de caixas que abrimos poucas vezes.
A criança é sempre a mais entusiasmada quando se acende uma vela. Olha para a chama e fica ali, simplesmente a vê-la. A criança e o gato, que também gosta de velas acesas.
Não é todos os dias que se acendem velas para vermos no escuro. A casa parece ficar diferente. É como se a vela trouxesse a luz e, de alguma forma, também o silêncio. A Mãe e o Pai também ficam diferentes. Falamos baixinho. A luz da vela parece trazer até outras pessoas para junto de nós. É como se aquela luz, pequenina, iluminasse... tudo.
E ali, juntos à vela que iluminava uma Noite particularmente escura, contavam-se histórias e faziam-se jogos. Devagar. Sem pressa. Olhavam nos olhos uns dos outros e viam o que nunca tinham visto. Como se aquele momento fosse o acontecimento há muito esperado. Como se este dia em que a luz faltou fosse, afinal, o primeiro dia iluminado.
Ilustração: Miguel Félix
Como se todos estivessem a tentar agarrar alguma coisa que estivesse a fugir. Andava-se e corria-se, como se a eminência de algum acontecimento estivesse, de facto, para acontecer. Mas não. Nunca acontecia. Ou talvez acontecesse todos os dias mas ninguém reparava. Andava-se à pressa porque era assim que se andava há muito tempo. Já ninguém sabia porquê.
Ao chegarem a casa ligavam-se televisões, computadores e tablets e carregavam-se telemóveis cujas baterias morriam diariamente mais ou menos à mesma hora. Baterias de morte certa e rotineira. Era importante actualizar murais e opiniões e publicar comprovativos fotográficos do que se tinha vivido.
A trovoada, o vento e a chuva que se esperava para aquele fim de tarde veio ao mesmo tempo de directos e publicações instantâneas. As rajadas foram tais que já ninguém se lembrava do último dia em que tinha faltado a luz à séria. A televisão não liga, o computador não funciona e as baterias não se carregam.
O fim de tarde avançou, indiferente. Escondeu-se o Sol e veio a Noite. Esta particularmente escura.
Entre irritações e frustrações profundas, procuravam-se velas nos armários altos ou nos armários baixos, já que nos armários do meio estão as coisas que achamos realmente precisas, como pratos, copos e canecas.
As velas lá se encontram, geralmente guardadas entre enfeites de Natal e presépios mais ou menos completos. Dentro de caixas que abrimos poucas vezes.
A criança é sempre a mais entusiasmada quando se acende uma vela. Olha para a chama e fica ali, simplesmente a vê-la. A criança e o gato, que também gosta de velas acesas.
Não é todos os dias que se acendem velas para vermos no escuro. A casa parece ficar diferente. É como se a vela trouxesse a luz e, de alguma forma, também o silêncio. A Mãe e o Pai também ficam diferentes. Falamos baixinho. A luz da vela parece trazer até outras pessoas para junto de nós. É como se aquela luz, pequenina, iluminasse... tudo.
E ali, juntos à vela que iluminava uma Noite particularmente escura, contavam-se histórias e faziam-se jogos. Devagar. Sem pressa. Olhavam nos olhos uns dos outros e viam o que nunca tinham visto. Como se aquele momento fosse o acontecimento há muito esperado. Como se este dia em que a luz faltou fosse, afinal, o primeiro dia iluminado.
Ilustração: Miguel Félix