O MENINO DO ESTETOSCÓPIO
Ainda era pequeno e já sabia que o coração das galinhas batia tantas vezes como o das pessoas. Digo, ao longo de uma vida. Embora os galináceos, de modo geral, vivam pouco tempo (depende da proliferação de vegetarianos nas redondezas), o seu coração é mais acelerado, como se estivessem sempre preocupados, e, por isso, bate cinco vezes mais depressa. No fim das contas, uma galinha que tenha vivido 15 anos (estou a ser optimista) e uma pessoa que tenha vivido 75 (estou a ser pessimista), terão tido o mesmo o número de batimentos dos respectivos corações no final das respectivas vidas. Já o coração do hamster, foi o mais rápido que encontrou. Várias foram as vezes que tentou contar mas o coração do animal batia mais depressa do que a sua capacidade para manter a contagem. Não ficaram registos.
Desde cedo que conheceu muitos animais. O tio era veterinário e juntos visitavam inúmeras quintas, clínicas, hospitais e escolas. Ainda não tinha 10 anos e já tinha assistido ao nascimento de ovelhas, cabras, de três vitelos e um sem número de gatos e cães. Tinha visto operações e também os últimos suspiros de alguns animais. Mas aquilo que lhe interessava era contar quantas vezes os corações batiam. Tinha aprendido com o tio que das primeiras coisas a fazer quando se observa um animal é verificar a frequência cardíaca. Era uma das primeiras linhas de diagnóstico. O coração bate de modo diferente nos animais doentes.
As pessoas, à semelhança dos animais, também ficam doentes e os seus corações mudam de velocidade. As pessoas que não deixam de ficar doentes e a frequência cardíaca é interrompida, não entram na contagem dos batimentos. Saem da média. O coração do tio bateu menos vezes do que o coração de uma galinha que tenha vivido 7 anos (estou a ser realista).
Pediu à avó para ficar com o estetoscópio e também com a seringa para gado bovino. Sempre teve medo daquela seringa e, em algum momento, temos de enfrentar os nossos medos.
Ficava muito tempo com o estetoscópio a ouvir o coração do gato que tinha em casa. Era o único animal a que agora tinha acesso. Escrevia os registos num caderno pequeno. Tudo parecia normal. Ao longo de uma vida a quantidade de batimentos cardíacos de um felino doméstico comum é pouco mais de metade da quantidade de batimentos cardíacos de uma pessoa que tenha vivido até aos 75 anos (estou a ser optimista). O gato entrou perfeitamente na média, tanto em matéria de anos vividos como em matéria de batimentos.
O estetoscópio, agora com pouca utilidade, deixava-o pendurado ao pescoço. Dava-lhe um ar de médico ocupado com outras coisas. E ocupou-se, de facto, com outras coisas. Arrumou-se o estetoscópio na respectiva caixa, junto à seringa para gado bovino que tinha dado lugar a outros medos. E deixou de ouvir corações por muito tempo. Quando deixamos de fazer uma coisa por muito tempo, esquecemo-nos como a coisa era importante.
Um dia, por recomendação do médico de família, foi fazer uma série de exames para saber se tudo estava bem. As implicações óbvias do procedimento da análise ao sangue não eram problema, já que nada se compararia a uma seringa para gado bovino. Para além destas, foi-lhe recomendado, por rotina, um electrocardiograma. É daqueles exames que dá logo para saber se está tudo normal. E estava. Mas aquela folha estreita prendeu-lhe a atenção. Aquilo era, pensou, um desenho feito pelo seu coração. Um desenho com altos e baixos que vinha de dentro dele. Percebeu aí que, de todos os corações que já tinha ouvido, faltava-lhe ouvir o mais óbvio e de fácil acesso - o seu.
Com rapidez recuperou o estetoscópio do fundo da gaveta e o que se seguiu foi... só dele.
O som que em si pulsava sem que ele nada fizesse, fez-lhe ficar ali sentado. A ouvir. Era como se aquele coração lhe quisesse falar havia algum tempo.
Quis, com alguma urgência, ouvir o coração da avó, do avô e de todas as pessoas que lhe emprestavam o coração por um bocadinho. Todos tinham sons diferentes. Em alguns parecia que alguém estava a bater à porta. Outros pareciam tristes. Outros contentes, apaixonados ou cansados. Era como se, de alguma forma, todos os corações batessem pela mesma razão mas em diferentes tons, frequências e andamentos.
Quando conhecia alguém, ao ganhar um pouco de confiança, pedia-lhe para ouvir o coração. É que ouvir o coração do outro é uma das primeiras linhas de diagnóstico.
Ilustração: Miguel Félix
Desde cedo que conheceu muitos animais. O tio era veterinário e juntos visitavam inúmeras quintas, clínicas, hospitais e escolas. Ainda não tinha 10 anos e já tinha assistido ao nascimento de ovelhas, cabras, de três vitelos e um sem número de gatos e cães. Tinha visto operações e também os últimos suspiros de alguns animais. Mas aquilo que lhe interessava era contar quantas vezes os corações batiam. Tinha aprendido com o tio que das primeiras coisas a fazer quando se observa um animal é verificar a frequência cardíaca. Era uma das primeiras linhas de diagnóstico. O coração bate de modo diferente nos animais doentes.
As pessoas, à semelhança dos animais, também ficam doentes e os seus corações mudam de velocidade. As pessoas que não deixam de ficar doentes e a frequência cardíaca é interrompida, não entram na contagem dos batimentos. Saem da média. O coração do tio bateu menos vezes do que o coração de uma galinha que tenha vivido 7 anos (estou a ser realista).
Pediu à avó para ficar com o estetoscópio e também com a seringa para gado bovino. Sempre teve medo daquela seringa e, em algum momento, temos de enfrentar os nossos medos.
Ficava muito tempo com o estetoscópio a ouvir o coração do gato que tinha em casa. Era o único animal a que agora tinha acesso. Escrevia os registos num caderno pequeno. Tudo parecia normal. Ao longo de uma vida a quantidade de batimentos cardíacos de um felino doméstico comum é pouco mais de metade da quantidade de batimentos cardíacos de uma pessoa que tenha vivido até aos 75 anos (estou a ser optimista). O gato entrou perfeitamente na média, tanto em matéria de anos vividos como em matéria de batimentos.
O estetoscópio, agora com pouca utilidade, deixava-o pendurado ao pescoço. Dava-lhe um ar de médico ocupado com outras coisas. E ocupou-se, de facto, com outras coisas. Arrumou-se o estetoscópio na respectiva caixa, junto à seringa para gado bovino que tinha dado lugar a outros medos. E deixou de ouvir corações por muito tempo. Quando deixamos de fazer uma coisa por muito tempo, esquecemo-nos como a coisa era importante.
Um dia, por recomendação do médico de família, foi fazer uma série de exames para saber se tudo estava bem. As implicações óbvias do procedimento da análise ao sangue não eram problema, já que nada se compararia a uma seringa para gado bovino. Para além destas, foi-lhe recomendado, por rotina, um electrocardiograma. É daqueles exames que dá logo para saber se está tudo normal. E estava. Mas aquela folha estreita prendeu-lhe a atenção. Aquilo era, pensou, um desenho feito pelo seu coração. Um desenho com altos e baixos que vinha de dentro dele. Percebeu aí que, de todos os corações que já tinha ouvido, faltava-lhe ouvir o mais óbvio e de fácil acesso - o seu.
Com rapidez recuperou o estetoscópio do fundo da gaveta e o que se seguiu foi... só dele.
O som que em si pulsava sem que ele nada fizesse, fez-lhe ficar ali sentado. A ouvir. Era como se aquele coração lhe quisesse falar havia algum tempo.
Quis, com alguma urgência, ouvir o coração da avó, do avô e de todas as pessoas que lhe emprestavam o coração por um bocadinho. Todos tinham sons diferentes. Em alguns parecia que alguém estava a bater à porta. Outros pareciam tristes. Outros contentes, apaixonados ou cansados. Era como se, de alguma forma, todos os corações batessem pela mesma razão mas em diferentes tons, frequências e andamentos.
Quando conhecia alguém, ao ganhar um pouco de confiança, pedia-lhe para ouvir o coração. É que ouvir o coração do outro é uma das primeiras linhas de diagnóstico.
Ilustração: Miguel Félix